30 novembro 2007

Divagações Cósmicas

AVANTASIA - Lost In Space


TAROT - Ashes

#8



Sinto a água quente do chuveiro a picar-me a pele, de tão quente que está adormece.
Recordo-me como se tivesse sido agora mesmo.

-Mãos ao alto! Quero o dinheiro dessa caixa! Já!
A pistola a escassos centímetros da minha testa. Um aperto no estômago. Olho para a minha colega a meu lado. Está tão estupefacta e assustada quanto eu. Isto não me está a acontecer.
-Não ouviram o que disse? JÁ!!!
-Tenha calma, tenha calma…
-Julgas que ‘tou a brincar? E se eu te enfiar um balázio nesses cornos, vais achar piada? Deixem-se de merdas e despachem-se!

Estúpido, estúpido! Dizer uma parvoíce dessas, a um drogadito esfarrapado! É capaz de qualquer coisa por dinheiro, até matar, por amor de Deus! Não tenho a quem pedir socorro, só nos filmes há um botãozinho subtil debaixo da bancada, aqui nem uma câmera de vídeo há!
-Mas… mas oiça, nós não podemos abrir a caixa sem… sem ser feito um pagamento. Não dá para abrir de assim de qualquer maneira.
-Eu mandei-te falar, minha puta? Mandei?

Um tiro.

Não consigo ouvir nada, só um zumbido lancinante. A dor. Este cheiro. Pólvora. Abro os olhos. A minha colega. Caída. Morta. O chão a ensopar-se com o sangue que lhe sai pelas costas.
Por mais quente que a água esteja, não a sinto quando me relembro deste momento, como que se me afundasse no temor que senti na altura.

Não acredito. Não pode ser. Isto não está a acontecer. Sinto os joelhos a tremer. Pensamentos disparam-se-me na cabeça. A minha família. Sinto-me tonto. Criança. Vou morrer também. Lírios. Vou vomitar. Não consigo falar. Água. Praia. Não consigo raciocinar. Tanto por fazer. Não, não, não. Não. Quero gritar. Não agora. Não aqui.
Limpo friamente os salpicos de sangue que me escorrem pela cara com a palma da mão. Olho para este pulha que tenho diante de mim.
O fim começa agora.

- Mais alguma coisa a dizer? Passa-me a merda do dinheiro, ou tu!, - aponta-me a arma – acredita, tu és o próximo.
-Oiça: - Este não sou eu: estou calmo, frio, confiante, como se possuísse na minha mão a chave que abre qualquer situação. Olho-o de frente, sem me aperceber do meu sorriso carregado de desdém – Que está a fazer? Pense. De onde raio veio você? Que raio está a pensar?
- Meu cabrão, eu n…
- Cale-se.
-Vais…
-Cale-se! E aponte isso para baixo.
Aponto para a arma. Vou levar um tiro, o olhar dele esmaga-me.
- Não te aviso outra vez. Preciso desse dinheiro, é mais importante que a tua vida, ou a minha. Ou mo dás ou dou um tiro à registadora, e depois de tirar o dinheiro, dou-te um tiro a ti. Acredita.
- Se dá um tiro a isto o mais provável é empaná-la e então é que não abre mesmo. Mesmo que consiga abrir isto agora, – aponto para a registadora – mesmo que meta o dinheiro todo no bolso, e mesmo que me dê um tiro, não tem por onde fugir. Já alguém ouviu o tiro, já alguém avisou a polícia, já alguém ouvirá os tiros que ainda lhe faltam, e já alguém voltará a avisar a polícia. Para onde julga que pode escapar? Matou uma pessoa, por amor de Deus! - Encolho os ombros, e aponto para a minha colega. A minha colega. Morta. Vê-la tira-me deste acto. Concentra- te. .- Sabe o que lhe vai acontecer? – Meto as mãos à cabeça, e disparo-as, de seguida, com os dedos bem esticados, em direcção ao verdugo. - Vai andar a fugir sem parar, e quando quiser parar alguém o mata a si: um polícia que não aguenta mais pela reforma, farto de correr atrás de escória, vai achar que desta vez chega e decide por si mesmo. BAM! – Gritei – Uma bala nas costas. Quem sabe?, quatro ou cinco, para ter a certeza que não se mexe mais. Ao polícia não lhe acontece nada, ainda ganha uma medalha por tirar das ruas uma ameaça, neste caso, você.
- Mas quem pensas tu que és, meu c…?
Ele sua por todos os lados. A arma a subir!

Tremo.

- Ok, pense. Pense! – Tenho-lhe as mãos esticadas, como se por artes mágicas conseguisse evitar o que quisesse – Tem a decisão da sua vida.
Aponto para o chão.
- Aqui mesmo, agora mesmo.
Olho para ele, como se esperasse uma resposta.
- Ou piora as coisas e dá cabo de si, ou põe-se a correr. Antes que o abatam que nem um animal. Como vai ser?
-O dinheiro. Já.
-O tempo passa, eles vão apanhá-lo! Pense no que realmente quer.
Aponta-me a arma outra vez! É agora.
- Como vai ser?

-Dinheiro. Já.
- Corra. Agora mesmo.
-Dou-te a escolher: um tiro nos cornos para proteger dinheiro que nem é teu, e juntas-te à tua amiga; ou o dinheiro na minha mão e ainda vês o sol amanhã. Por isso, sou eu que pergunto: como vai ser?

É impossível contra-argumentar. Na verdade, que raio estava eu a fazer? A aplicar a psicologia que nunca aprendi na universidade que nunca frequentei, arriscando-me a levar um tiro, quando realmente estou a proteger o dinheiro de um patrão que me paga mal e me dá ainda menos mérito, que pouco mais me dá para comer e não dormir à chuva? Passo os dias a repor pacotes de batatas fritas e amendoins que em cinco minutos já estão todos revirados, a vender biscoitos a velhinhas que me entediam ainda mais que aos mil e um gatos que albergam, a vender revistas cor-de-rosa e de tricot a domésticas ocas, e a vender tabaco a idiotas que nem um “bom dia” sabem dizer? Por este negócio miserável que nem me pertence meto-me no fio da navalha e faço frente a um patético drogado cujo dinheiro “mais importante que a tua vida, ou a minha” de certo vai directo para mais um “chuto” num beco decrépito?

Que pensava eu? Onde tinha eu a cabeça? Corto o ar dos pulmões cada vez que penso o perto que estive do cano metálico. Não há banho que me tire o desespero que senti.
Fode-te, patrão. E fode-te, drogado.

-Ok, ganhou. – Carrego num botão da registadora. – É todo seu. Suma-se. Simplesmente… não me faça mal.
- Vem para este lado, não vás tu tentar algo.
- Como vou tentar algo com uma arma apontada a mim? – A ideia de ter de passar por cima do corpo da minha colega revirou-me o estômago, esforcei-me para não vomitar.
- Para este lado, já disse.
Assim o fiz, lutando comigo mesmo para não pensar que tenho um cadáver embebido em sangue a milímetros de mim. Depois de chegar a seu lado foi ele para a parte de trás da bancada, com o revólver sempre apontado a mim. Enche os bolsos com as moedas, enrola as notas e junta-as ao bolso das moedas.
Volta para o meu lado.
- Fizeste bem, hoje não é dias para heroísmos. Agora vais deitar-te no chão, e eu vou sair por aquela porta. Ninguém ouviu o tiro e ninguém chamou a polícia, por isso faz-me um favor e não te levantes nem tentes nada estúpido. Não me faças voltar atrás. – e di-lo enquanto balanceia a cabeça, em tom de conselho.

A ironia. O nojo que me provoca. O quanto desejo que a minha própria pele me saia do corpo para não sentir mais a sujidade de ter tido a vida nas mãos de alguém tão ignóbil.

Mete o revólver no bolso, mas noto que se mantém apontado à minha pessoa. Preparo-me para me abaixar.
-Quietos! Mãos ao ar! Tudo no chão, JÁ!

Olhamos incrédulos para a porta. Outro drogado. Outra arma. Isto não pode ser real.
-Quero os dois no chão, mas tu – aponta-me a arma – abre primeiro a registadora – e segue para junto de nós.
- Ouve, meu, ´tás a cometer um erro. – Diz o primeiro verdugo.
-Calado! Julgas que não disparo? Disparo, cabrão, e não me importo se te espalho os miolos no chão.
Outra vez. É hoje. Está predestinado. Vou morrer. Sem hipótese de fazer algo contra. Nas mãos de porcos. Não. Não o admito. Já não me interessa se morro.
- É melhor ouvir o que ele lhe está a dizer, ele não é para brincadeiras, acredite.
- Mas eu perguntei-te alguma coisa? Diz adeus, jovem.
Aponta-me o cano à cara. É agora.

Um tiro. Não sinto nada. Só os joelhos a desfalecerem. Não ouço ruído algum, fechei os olhos e não vejo nenhum túnel de luz. Apenas sinto…nada. Será isto a morte?
Abro os olhos. Não sinto nada. Não sinto nada! Estou vivo! Reparo na roupa ensanguentada, sinto sangue no rosto. Olho em frente e vejo o primeiro assaltante a apontar-me a arma fumarenta. Mas não foi em mim que disparou, foi ao segundo ladrão, que estava na minha direcção e agora jaz a meus pés. Isolo-me numa poça de sangue. Já nem diferença me faz, penso que entro em choque.
- Foi o teu dia de sorte, miúdo. – Abaixa a arma, vira-me as costas e segue para a porta de saída.

Sai de um modo tão simples e impávido. Matou duas pessoas. Uma delas até agradeci, admito, mas matou alguém que eu conhecia, que vi e senti com vida, alguém com quem convivia, e que agora nada pode fazer. Brinca com a nossa vida como se fosse deus. Não o permito. Odeio-te miserável, não te vou deixar ir assim tão simplesmente! Dou um murro na parede de azulejos do banho.

Desço até à poça de sangue que cerca a mão do segundo miserável, decidido, e pego a sua arma.
-Quieto! Livra-te de sair!
O malvado pára. Vira-se e admira-se.
-Mas que pensas tu que ‘tás a fazer?
-Calado! CALADO! Pensas que te vou deixar ir? Mataste a minha amiga, e quase me matavas a mim! Não mereces respirar, verme!
-Não vais querer fazer isso, tu próprio o disseste!
-Merda para o que disse! Vais morrer! A arma para o chão!
-Ouve…
- A arma para o chão. – E grito: Já! – Enquanto me esvaio em lágrimas.
-Ok, estou a pôr. – E lança a arma para o piso.
-Cômo pudeste? Tentar matar-me?
-Podia ter-te matado, mas caso não te lembres, salvei-te a vida. Se não fosse eu, agora ‘tavas morto.
-Calado!
-Se não fosse eu já não respiravas. Deves-me a tua vida quer queiras, quer não.
-Não!
-Oh, sim! Mas tenho uma proposta para ti, e tudo fica resolvido.
-Que proposta, cabrão? Pensas que me interessa o que me possas dizer?
-Matares-me não serve de nada. Mesmo que dispares e me mandes pa’ cova, mataste alguém.
-Tu não és ninguém, és um miserável! Não és nada, nada! – E as lágrimas, torrenciais, enquanto lhe aponto o revólver trémulo.
-Mas para os tribunais sou. E sei o que digo, já ‘tive preso. Matas alguém, mesmo alguém como eu, aqui onde estamos, e vais presente a tribunal, E vais preso alguns anos à custa disso.
-Mentes!
-Oh, não, não. Vais alguns anos pa’ pildra. Perdes os melhore anos da tua vida. Ainda és novo, arranjas namorado com facilidade na gaiola, eles lá adoram moços tenrinhos como tu.
-Calado! Já avisei!
-Ouve, sê sensato. Não te vai servir de nada, e a mim também não me convém levar um balázio. Fica com o dinheiro, eu fico só com as moedas, já me chegam.
-Achas que me vendo, cabrão? Achas que vales mais do que a vida da minha colega, ou da minha? Achas que a minha vida tem um preço?
-O heroísmo não te serve de nada, não faz o tempo voltar atrás. Fica com as notas, já são algumas, dão-te p’alguns meses. Cuida de ti, bem precisas. Eu vou-me embora, chamas a polícia, culpas-me, as duas balas são da minha arma, e eu lá me trato. Ninguém pensará de teres tu o dinheiro. A decisão é tua, a consciência é tua. Cada um quer o melhor pa’ si próprio, e faz o que tem que fazer. Faz o que tens que fazer. E o que é melhor para ti, agora?
E ainda recordo os seus lábios gretados enquanto lançava as viscerais palavras:
-Como vai ser?

Como vai ser. Como vai ser. Como. Vai. Ser.
Todos os dias me forço a tomar banho a esta hora, e todos os dias desejo que por estes minutos tudo o que me aterroriza se vá com a água. A sujidade mantém-se no corpo, na alma.
Se pudesse voltar atrás na minha decisão, não estaria no abismo em que me encontro.

02 novembro 2007

01 novembro 2007

#7


Acordes doces, gentis. Teclas carregadas suavemente, quando é a tua pele que toco.
Tudo o que não faço porque me prendo a ti; e tudo o que faço nunca é feito sem a tua imagem.
Toco, repito, continuo: não te deixo fugir, não paro. Acorde atrás de acorde: sempre tu.

Não sei porque toco, não te tenho: podê-lo-ia; mas tenho medo, não consigo sair deste compasso. Perder tudo o que tenho agora só por ti, era a maior mostra do aprisionado que sou por ti. Mas receio que não bastes para encher o medo do vazio.
Não sou digno de ti como te ideio. Não arrisco por ti, ainda menos por nós!, mantenho-me impávido.
Carrego as teclas, não as sinto.

Sinto-me dividido. Durmo uma vida e desperto noutra, sem saber em qual me aninho realmente. Invento sorrisos e piadas: invento-me todos os dias. Dia após dia. Sou descartável: não existo: sobrevivo.

Uma cópia de vida, impressa em dias, a cinzento. Porque não me decido a ser quem sou.

Repito. Teclo. Acordes doces, gentis. Prendem-me: não vou a lado algum.